O Bar Barão

Felipe Araujo
5 min readJan 5, 2021

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*Texto escrito para atividade sobre lugares do curso de Escrita Criativa do MIS com o professor Diego Andrade em setembro de 2020

Todo sábado começava igual. Meu pai e eu parados na calçada enquanto ele procurava as chaves certas para abrir a porta. Isso era sempre cedo, naquela hora que as ruas do centro ainda estão meio vazias, só com funcionários abrindo as portas laterais dos comércios para os descarregadores chegando com as mercadorias do dia. Meu pai era um desses funcionários.

Chegávamos por volta das sete horas na esquina da Barão de Duprat com a Rua das Flores. A fachada, que era de tijolinhos laranja e madeira escura, imitava aquele estilo de casinha alemã, com telhado pontudo e duas janelinhas brancas (falsas) no alto. Depois que ele levantava a porta e entrávamos, o som da rua diminuía e éramos apenas nós lá dentro por um tempo.

O salão era comprido e só tinha uma janela (de verdade) ao lado da porta, por isso a luz do sol não alcançava toda sua extensão. Meu pai então ligava as luzes, que penduradas em quatro lustres, iluminavam o lugar. As paredes eram cobertas com forros de madeira escura, que combinava com o tom da maneira das mesas, dando um aspecto rústico ao lugar. De ponta a ponta, penduradas em pequenos ganchos de ferro, corriam fileiras duplas de canecas de chopp, das mais variadas formas e cores e também mais variadas origens, e embaixo das canecas uns quadros muito bonitos com temas boêmios e também reportagens sobre o restaurante emolduradas, que saiam sempre nos guias gastronômicos da cidade. Hoje me pergunto o que aconteceu com esses quadros e canecas.

Do lado direito da sala, ficava o balcão de fórmica, que era bem extenso e era ali que meu pai trabalhava. No meio dele ficava uma enorme chopeira alemã, que parecia bem antiga, mas que ainda funcionava muito bem. Durante todo o dia, um sem número de chopps eram tirados ali e servidos aos clientes, que muito satisfeitos sempre diziam que aquele era um dos melhores de São Paulo. E eu, que no máximo, tinha ajudado a rolar um dos vários barris que chegavam pela manhã pra debaixo do balcão pra que meu pai o ligasse na máquina, sentia muito orgulho ao ouvir isso. Do outro lado do balcão ficava a estufa de frios, onde meu pai fazia os lanches e canapés mais deliciosos que lembro de já ter comido. Sei que as pessoas iam lá pela bebida, mas pra mim o mais importante sempre foram os sanduiches que meu pai fazia. A estufa tinha todo tipo pães, queijos e embutidos. Grandes, pequenos, salgados, picantes, nacionais e importados. Eu conheci ali sabores exóticos que nunca tinha imaginado que alguém colocaria no meio de dois pães. Só de lembrar a boca já enche de água.

Depois que todas as compras eram descarregadas e os outros funcionários começavam a chegar, meu pai sempre me perguntava o que eu ia querer pro café da manhã. Então ele fazia o meu lanche e levava até o fundo do salão onde ficava uma mesa pequena, com apenas uma cadeira, que eu chamava de “minha mesa”. O lugar era cheio de mesas de madeira escura simples, algumas quadradas, outras redondas, mas todas elas eram de quatro ou mais lugares, com cadeiras de estofado vermelho que eram bastante confortáveis. Nunca entendi porque, solitária, na extremidade mais distante da porta ficava aquela mesa para uma pessoa, mas mesmo sem entender eu achava muito legal ter uma mesa só pra mim, era como se eu fosse um observador de todo o restaurante. Sentado no meu canto, todos os sábados, eu comia e depois pegava papéis e canetas coloridas que meu pai guardava no armário dele e passava horas desenhando, ou então pedia pro meu pai me levar até uma velha banca do jornal que tinha ali perto, onde ele comprava gibis e revistas infantis, que eu levava de volta pra minha mesa e me debruçava sobre elas o resto do dia. Ocasionalmente meu pai me chamava pra me apresentar pra alguém, algum cliente já velho conhecido, que me convidava pra sentar à mesa dele e me oferecia mais lanches e canapés que meu próprio pai fazia. Até chopp eu me lembro que um me ofereceu uma vez, e eu tomei escondido do meu pai, mas lembro que não gostei e até hoje não sou muito fã desse tipo de bebida.

No fim do dia, lembro que eu sempre ajudava meu pai a limpar o salão antes de fechar. As vezes alguns últimos clientes ainda estavam por lá quando meu pai aparecia com as vassouras e pedia pra eu pegar a pá; ou então ele me deixava atrás do balcão lavando os copos de chopp num aparelho de lavar copos que eu achava muito engenhoso. Eu gostava muito dessa parte também, eu sentia como se estivesse finalizando meu dia de trabalho duro. Juntando o lixo e deixando os copos limpos e arrumando o salão que era como minha casa do fim de semana, para meu pai recomeçar tudo na segunda feira. Até que chegasse o próximo sábado, onde eu voltaria ao restaurante mais uma vez, ajudaria meu pai, passaria na velha banca de jornal, veria alguns conhecidos, e assim semana após semana.

Só que ai eu cresci, e chegou um sábado que eu falei pro meu pai que não queria ir, que iria fazer outra coisa, talvez sair com algum amigo, talvez fazer algum trabalho de escola, não me lembro, só sei que parei de ir. E então meu pai parou de ir também. O restaurante fechou. No último dia que meu pai foi, eu o acompanhei porque tinha que fazer algo pelo Centro, não me recordo o que, e foi uma sensação estranha voltar lá. Me lembro de sentar na minha mesa pra tomar um refrigerante e pensar que o salão não era tão grande como imaginava, nem minha mesa era tão legal e nem tão minha, e essa foi a última vez que entrei lá, pelo que sei, hoje, o prédio é uma daquelas galerias de compras que tem aos montes ali pela região. E meu pai agora trabalha em outro restaurante, que visitei poucas vezes e nunca me demorei muito. Um pouco porque hoje a vida é diferente e eu não sou mais uma criança que vai com o pai pro trabalho e pede um lanche especial com tudo que tiver na estufa e outro pouco porque sei que o restaurante que ele trabalha hoje nunca vai ser tão legal quanto o Bar Barão.

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